domingo, 5 de fevereiro de 2012

Leiamos o poema e a música [3]

Imperador Da Ralé

Imperador da ralé
Compadre Chico Bacharel
Cordão, pulseira e boné
Sorriso manso, olhar cruel

Devoto do candomblé
Compadre, santo coração
É homem de muita fé
Só mata quando tem razão

Vai, pisa leve, mané
Que aqui no morro ele é doutor
Reza mandinga de fé
É macumbeiro professor

Só tem paixão por mulher
Se é moça pura ou moça flor
Se é parideira não quer
Se é complicada tem horror
Respeita freira e pajé
Mas tem pavor de cobrador

Arruma as coisas, mané
E pula fora desse andor
Se Chico pega no pé
Não tem paixão, não tem amor
Não sobra nada de pé
Não sobra nada do senhor

É homem de decisão
Estrategista de má-fé
Armado por precaução
Não gasta chumbo em pangaré

Compadre é calmo que só
Escuta muito, fala não
Tem paciência de Jó
Só não perdoa traição

Toma cuidado, mané
Que Chico pode se zangar
Escuta a voz da ralé
Respeita o dono do lugar

Chegado no arrasta-pé
Compadre Chico é bom demais
Requebra e quebra a mulher
No dois pra frente e dois pra trás
Se é moça certa ele quer
Se fala muito não quer mais

Arruma as coisas, mané
E pula fora desse andor
Se Chico pega no pé
Não tem paixão, não tem amor
Não sobra nada de pé
Não sobra nada do senhor




Poema e música por Mario Gil e Zeca Ferreira ( no álbum "Comunhão" de 2007).

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Leiamos o poeta e o poema [1]

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?



O poema "Traduzir-se" foi escrito por Ferreira Gullar (no vídeo, recitando-a).

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Leiamos textos literários [5]

O Paraíso Democrático

É conhecida a história do besouro. Uma comissão de técnicos em aerodinâmica, aviões e foguetes espaciais, examinou, com equipamento sofisticado, de última geração, as possibilidades de um besouro voar. E concluiu pela impossibilidade estrutural e operacional: besouro não pode voar.

No entanto, desde que existem na face da Terra, os besouros voam, aparentemente sem muito esforço.

Dos besouros passo para a democracia como instituição política, econômica e social.

Analisada com isenção e bom conhecimento histórico, é a melhor forma que a humanidade encontrou para se governar e agir, tanto no setor público como na vida particular de cada cidadão.

A democracia é como o besouro, mas às avessas. É perfeita, tem todos os equipamentos necessários para gerir a humanidade, criando condições de liberdade, paz e prosperidade. Devia voar ou funcionar, tornando as nações mais perfeitas e justas.

Ela não é nem pode ser questionada. A alternativa seria a ditadura, a tirania.

Aristóteles garantiu que a afirmação de uma coisa não significa a negação de outra. Cara e coroa são faces da mesma moeda.

Para citar Nelson Rodrigues, até as cotias do Campo de Santana conhecem os crimes e aberrações dos regimes totalitários.

A Primavera Árabe tem sido saudada como a nova idade de ouro para a humanidade.

Tanques e canhões do mundo livre formam a corte celestial de justiça e liberdade.

Ouvi um discurso de Obama, já em campanha para a reeleição. Tudo o que disse sobre os problemas que enfrenta e as soluções que propõe poderia ser dito pelos sobas, ditadores e líderes de povos subdesenvolvidos: corrupção, violência e injustiça social no país que é considerado o mais democrático do mundo.


Carlos Heitor Cony

Folha de S. Paulo - Opinião - São Paulo, terça-feira, 31 de janeiro de 2012

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Leiamos textos literários [4]

A Queimada

Queime tudo o que puder:
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupa suja
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência e anuncia
[a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados,os rascunhos, as variantes
[e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita.

Esse poema foi escrito por Lêdo Ivo e pode ser encontrado na obra "Curral De Peixe" de mil novecentos e noventa e cinco.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Leiamos textos literários [3]

Flores Secas Do Cerrado

Há pessoas que falam menos que um papagaio, mas em Brasília até as paredes emitem estalos suspeitos. Silêncio, mesmo, só na lonjura, no cerrado original. Na parede do quarto do hotel observo um origami com dobras geométricas. Da janela posso ver árvores desfolhadas com galhos retorcidos, o gramado marrom, o horizonte queimado pela seca de setembro. No centro da paisagem calcinada, a praça dos Três Poderes... Dizem que a nova Biblioteca de Brasília foi inaugurada sem livros. Será uma metáfora da cabeça de tantos políticos? Ou do tempo em que vivemos?

A arrumadeira é uma mulher de Minas; o recepcionista, um rapaz pernambucano, um dos ajudantes do chef de cozinha, baiano. O Brasil todo está aqui, e esse Brasil de verdade parece ausente nas esculturas côncava e convexa do Congresso Nacional. Cada vez que entro no elevador minha cabeça se enche de sons de pássaros. Cantam e não aparecem: onde estão? Não há pássaros nas imagens do Pantanal e da Amazônia coladas nas paredes do elevador panorâmico. Mas quando subo ou desço 17 andares, sou obrigado a ouvir trinados metálicos na caixa de vidro e aço. Lembro do conto “Paolo Uccelo”, do escritor francês Marcel Schwob. O genial artista florentino do Quattrocento era obcecado por pássaros, pela geometria e pela perspectiva. Uccello queria entender o mundo (o espaço) em profundidade. As paredes de seu ateliê eram cobertas de pássaros pintados por Uccello, daí seu apelido e o título do conto de Schwob. Mas a vida não é imaginária, nem sempre é, sobretudo quando o elevador pára no térreo e o cronista se senta à mesa do café da manhã e ouve pedaços de conversas indiscretas:

– Volto na próxima semana por causa do resultado da licitação...

– Acertei com o senador, só falta...

– Consegui marcar uma audiência, agora vai ser mais fácil...

A mulher de Minas ganha menos de dois salários (mínimos) e mora em Samambaia, uma das favelas do Distrito Federal. Na época em que morei em Brasília ninguém dizia favela, e sim cidade-satélite. Esse eufemismo urbano ainda persiste, mas tende a desaparecer e sumir de vez. O plano piloto da nova capital foi construído sob o signo da miséria brasileira: os candangos pobres, operários, artesãos e desempregados migraram de todos os quadrantes e foram morar na periferia da cidade-monumento projetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Como seria o Brasil ou Brasília se não houvesse existido o golpe militar e 25 anos de ditadura? Sem essa noite longa e infame, o país teria avançado socialmente? Haveria tanta miséria? A educação pública de qualidade – um sonho obstinado de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro – seria melhor? Creio que sim. A interrupção da democracia foi um desastre, o toque militar de recolher, um retrocesso.

O ajudante do chef de cozinha ganha mais do que a mulher de Minas e mora em Sobradinho.

– Se eu não comesse no hotel, passaria fome. Meus dois meninos são filhos da Capital.

Gêmeos da era Collor, vieram ao mundo durante um pesadelo político. Sobradinho. Nunca me esqueci das cidades-satélites, para onde íamos pichar muros com slogans contra a censura e a brutalidade. Por onde andam meus amigos daquela época? Zé Wilson, o Cuca, viajou ainda jovem para o outro lado do espelho, nem me deu adeus. Ainda me lembro do entusiasmo com que comentava os clássicos; lia tudo e nos olhava por trás de lentes grossas no rosto de criança. Chico dos Anjos, filho do escritor Cyro dos Anjos, também partiu antes do tempo. Disse ao Chico que O amanuense Belmiro era um belo romance. Como os mineiros escrevem bem, de dar inveja, acrescentei. Percebi uma ponta de orgulho no olhar do meu amigo. Depois ele deu uma gargalhada. O Chico ria quando todos ficavam sérios, não era tempo de risadas, mas ele tinha humor, e um astral na lua.

Nada era muito asséptico em Brasília, uma cidade embrionária, capital pequena. E vigiada. Poucos homens usavam terno e gravata, uma poeira vermelha cobria as super-quadras, manchava as fachadas dos ministérios, a catedral então inacabada, o Palácio do Planalto. O outro, da Alvorada, também avermelhava. Barro subversivo, os milicos diziam ou deviam dizer. Barro maldito. Até o barro primordial era comunista. O setor hoteleiro era acanhado, lembro das duas noites em que dormi no hotel das Nações, noites de angústia, meu coração moído de saudades do Norte. Depois fui morar num dos quartos de uma casa na avenida W-3 Sul. Aluguel barato de uma pensão informal. Uma família de negros, o pai era um mestre-de-obras baiano, candango de primeira mão. Hotel das Nações, inaugurado em 1962. Que belo nome para uma nação esperançosa, antes do desespero. As casas da W-3 já estão desfiguradas. Tinham um pátio nos fundos, que podia ser um quintal. Duas crianças brincavam de cabra-cega ao redor da pitangueira, e um dia ganhei de uma delas um punhado de frutas e comecei a gostar de Brasília. Agora os pátios foram cobertos por puxadinhos, ocupados por quartos amontoados, coisa de cortiço. As famílias cresceram, a renda caiu, os proprietários alugam os fundos da casa. Nem Brasília, planejada e construída com capricho, resistiu ao caos urbano arquitetônico. A miséria e suas favelas cercam os três poderes da república, o medo e a violência de ontem voltaram com outra feição. Chico dos Anjos, Cuca, vocês não viram isso. João Luiz Lafetá, crítico fino e sofisticado, você morou em Brasília naquela época e também partiu sem ver o país subtraído de uma esperança teimosa, tão brasileira. João Alexandre Barbosa, outro amigo, crítico dos mais eruditos, também nos deixou. João Alexandre pediu demissão da Universidade de Brasília quando dezenas de professores foram expulsos dessa instituição no fim da década de 60. Ele continuou sua carreira docente na USP, mas a UnB resistiu, sobreviveu. Penso em vocês enquanto escuto trinados metálicos de pássaros ausentes. Dezessete andares em trinta segundos. Melhor caminhar a esmo, rever Brasília no escuro, de madrugada. Saio da jaula de aço e vidro e vejo na recepção duas mulheres falsamente louras que conversam com lobistas e sentam em poltronas forradas de couro; elas pedem uísque, devem ganhar numa noite o que a mulher de Minas ganha por mês, e o parceiro lobista ganhará mais do que todas as prostitutas e outras mulheres trabalhadoras ganhariam em dez anos de labuta.

O origami na parede não me diz nada, é mais um ornato num quarto de hotel que poderia estar nas Filipinas, na Holanda ou na África do Sul. Faço uma viagem à deriva pelo cerrado, quero encontrar um lugar do passado, o Poço Azul, onde me refugiava do medo e dos homens. É uma viagem no tempo. Aqui há pássaros de verdade, posso encontrar o repouso do pesadelo, o sono da solidão e a memória de um desejo apagado por décadas. A paisagem é bela e áspera: árvores anãs com galhos retorcidos, braços tortos de seres vegetais, trágicos. Aqui o passado não lanha meu corpo nem minha alma, posso colher flores secas do cerrado e escrever esta crônica de amor a uma cidade que não sai de mim.

Esse texto foi escrito por Milton Hatoum.

domingo, 29 de janeiro de 2012

sábado, 28 de janeiro de 2012

Leiamos imagens [4]

Primavera



Tarsila Do Amaral pintou esse quadro em 1946. Óleo sobre tela, em 75 x 100 cm. No momento, pertence a uma coleção particular e só podemos ver a imagem do quadro porque o Romulo Fialdini nos tirou uma foto.